21 outubro 2009

Mitos urbanos

É muito comum pensar-se que as pessoas "de letras" - entre as quais me conto - não gostam de "ciências". Muito me apraz desfazer, pulverizar, demistificar essa ideia feita. E não serei eu a fazê-lo, mas alguém muito mais habilitado do que eu, o escritor britânico Ian McEwan, cujos livros se recomendam vivamente. Neste blogue, falaremos em particular de Nunca me deixes e de O sonhador.


Este último, já o disse noutro lugar, foi-me emprestado pelos filhos da professora Ana Paula Matos, os quais, aliás, já me emprestaram outros, de que também gostei. O sonhador conta a história de um jovem chamado Peter Fortune que é uma versão masculina, actualizada - mas não menor - da Alice, da maravilhosa personagem de Lewis Carroll (e estou a referir-me à verdadeira, e não à versão animada da Disney).

O Peter é um distraído. Mas tão, tão, tão distraído que até se esquece da irmãzinha mais nova no autocarro. E é justamente por ser distraído (criativo, imaginativo) que lhe diagnosticaram problemas a Matemática (que ele, realmente, não tem). Ora leiam:

«O problema de quem sonha acordado e não diz quase nada é que, na escola, os professores, principalmente aqueles que não conhecem bem os alunos, são levados a pensar que algumas pessoas são um bocado estúpidas. Ou, se não estúpidas, pelo menos tristes. Ninguém consegue ver as coisas espantosas que estão a acontecer dentro da cabeça delas. Um professor que visse Peter a olhar pela janela ou para uma folha em branco pousada em cima da carteira podia pensar que ele estava aborrecido ou a pensar numa resposta que não sabia. Mas a verdade era totalmente diferente.
Por exemplo, certa manhã a turma de Peter teve um teste de matemática. Tinham de fazer umas contas muito grandes em vinte minutos. Mal começou a fazer a primeira conta, que era somar três milhões quinhentos mil duzentos e noventa e cinco com outro número quase tão grande, Peter deu consigo a pensar no maior número do mundo. Na semana anterior tinha lido que havia um número com o nome fantástico de gogol. Um gogol era 10x10 cem vezes. Um 10 com cem zeros à frente. E havia outro nome ainda melhor, uma verdadeira beleza - um gogolplex. Um gogolplex era 10x10 gogol vezes. Que número!
Peter abandonou o espírito à fantástica dimensão daquele número. Os zeros subiam no ar como bolhas de sabão. O pai dissera-lhe que os astrónomos tinham chegado à conclusão de que o número total de átomos que existiam nos milhões de estrelas visíveis era um 10 com noventa e oito zeros à frente. Nem todos os átomos somados chegavam a um gogol. E uma gogol era uma coisa de nada comparado com um gogolplex. Se se pedisse a alguém um gogol de bombons, não haveria átomos suficientes no mundo para os fazer.
Peter recostou a cabeça na mão e suspirou. Nesse instante, a professora bateu as palmas. Tinham passado vinte minutos. Peter não tinha feito mais do que escrever o resultado da primeira conta. Todos os outros tinham acabado.» (p. 16)
Não é inteligente, este Peter Fortune (pergunto eu, depois de também ter parado cinco minutos a sonhar com um gogol de bonbons)?
Infelizmente, a escola nem sempre se compadece com estes jovens sonhadores:
«A professora tinha estado a ver Peter a olhar para o papel sem escrever nada e a suspirar.
Pouco tempo depois deste incidente, Peter foi posto num grupo de crianças que tinham grandes dificuldades com as somas, mesmo de números pequenos como 4 e 6. Peter fartou-se depressa e achou que ainda era mais difícil estar com atenção. Os professores começaram a pensar que ele tinha demasiadas dificuldades em matemática mesmo para aquele grupo especial. Que haveriam de fazer em relação a ele?
Claro que os pais e a irmã sabiam que ele não era estúpido, nem preguiçoso, nem desinteressado; e alguns professores começaram a perceber que dentro da cabeça dele estavam a acontecer as coisas mais mirabolantes do mundo. O próprio Peter acabou por aprender, à medida que foi crescendo, que, como as pessoas não conseguem ver o que está a passar-se dentro da nossa cabeça, o melhor a fazer, se queremos que nos compreendam, é dizer-lhes. E, então, começou a escrever algumas das coisas que lhe tinham acontecido quando estava à janela ou deitado de costas a olhar para o céu. Quando cresceu, tornou-se escritor e foi muito feliz.» (p. 17)

Não está bem? Não é bonito? E não tinha jeito para matemática?! Tinha, claro que tinha. Só que era muito avançado, e acabou por desenvolver outros talentos...

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